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As diferenças dos planos de governo na área de cultura

Há diferenças ideológicas bastante contundentes nos três programas de governo, a despeito do já reiterado esforço de deixar o texto dos planos palatável para as pessoas. E é muito simbólico que essas diferenças se apresentem na questão cultural exatamente quando percebemos o país tão dividido

 

Os programas de cultura refletem o pensamento de cada uma das campanhas. A despeito do esforço retórico dos programas de governo, há diferenças substanciais em cada um dos programas. Se Lula e Ciro atendem, em razoável medida, ao debate nacional do desmonte das políticas culturais no Brasil, Bolsonaro segue vivendo em sua realidade própria, pregando um cenário cultural de progresso e investimento no setor. 

E é só o que ele faz. O programa de governo de Bolsonaro para a cultura é meramente protocolar. Vende uma prestação de contas para o setor que induz o leitor ao entendimento de que há investimentos consistentes e perspectiva de melhora. O documento chega a comemorar um orçamento de 25 milhões de reais para o Iphan na restauração e reforma de 10 obras no país todo. Não há menção da importância ou do papel da cultura no desenvolvimento nacional e muito menos da relação da área com a democracia. Enfim, o programa de cultura do atual governante revela bastante o que ele pensa sobre o assunto: nada. É inclusive interessante perceber que, nesse ponto, o programa não destilou o seu veneno ideológico já demonstrado em outros pontos. Parece que o atual presidente joga bastante na defensiva quando o assunto é esse. 

Ciro, por sua vez, não menciona o drama do setor cultural brasileiro. Mas faz propostas, inclusive bastante específicas, como a regulação dos serviços de streaming, a recriação do Minc, o papel regulatório da Ancine, e um programa de democratização do acesso à internet com crédito para compra de smartphones sem juros, wifi gratuito e oferta de formação na área. Mas é importante chamar atenção para um recorte ideológico bastante nítido no texto. Isso porque o programa se posiciona de forma contundente numa visão da cultura enquanto afirmação da identidade nacional. O texto fala em uma ameaça à identidade nacional vinda dos hábitos de consumo e de “uma estética internacional que tem repercussões práticas nos desejos, hábitos de consumo e na própria felicidade das pessoas”. 

Museu Nacional de Belas Artes apresenta novas obras incorporadas à coleção no seu aniversário de 85 anos. (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

O programa de Ciro esquece que a padronização internacional do consumo é uma consequência do neoliberalismo e da globalização e trata um problema de natureza econômica e social como uma questão cultural. Além disso, esse destaque incisivo no aspecto identitário da cultura aparenta uma leitura mais antiga do que é política cultural. Em outras palavras, Ciro se apoia em Vargas para falar do futuro do setor. Há sinalizações importantes como a questão da diversidade, da democratização do acesso, da cultura “periférica de rua”, da economia criativa, mas todas elas amparadas pela premissa maior da identidade nacional “gravemente ameaçada” pela estética internacional. O programa apresenta um raciocínio mais sofisticado que o de Bolsonaro, mas é preciso destacar que há outras leituras mais modernas sobre o papel da cultura, que ultrapassa a identidade e se estabelece enquanto elemento central do desenvolvimento. 

Lula parece conhecer essas leituras mais modernas. Seu programa coloca, logo na parte dos compromissos, a cultura no mesmo patamar que os direitos humanos e o reconhecimento à diversidade. Afirma que “a cultura é uma dimensão estratégica do processo de reconstrução democrática do país e da retomada do desenvolvimento sustentável”. O texto segue com sinalizações ao fortalecimento das instituições culturais, inclusive com a implantação do Sistema Nacional de Cultura e a proposta de descentralizar os recursos para estados e municípios. O programa fala em economia da cultura, economia criativa, memória, diversidade, cultura periférica e liberdade artística. Aqui, centralmente, é importante destacar porque o programa de Lula é diferente do de Ciro. Lula afirma que o fortalecimento das políticas culturais qualifica “as relações sociais por meio do fomento a valores civilizatórios e democráticos”. É um outro passo se comparado a tal construção da identidade nacional proposta por Ciro. E faz muita diferença. 

Por outro lado, o programa segue em sua tendência de não afirmar tantos compromissos práticos. Lula tem feito mais promessas para a cultura do que o seu programa de governo. É comum (basta uma busca das palavras Lula e cultura) o ex-presidente inserir em seus discursos questões como a recriação do Minc e a criação de mecanismos locais de participação social para definir o rumo dos investimentos em políticas culturais nas cidades e municípios. E ele diz isso não só em eventos com representantes do setor cultural, mas ele coloca o assunto na mesa inclusive com empresários, afirmando o papel do setor inclusive na recuperação econômica. A cultura é vista por Lula como um elemento central do patamar civilizatório.

Nesse sentido, é importante destacar a diferença: Bolsonaro enxerga a cultura como um departamento do governo que sequer merece um ministério; Ciro enxerga a cultura enquanto um elemento de identidade nacional, para proteger o país de uma “estética” internacional. Lula enxerga que a cultura “é essencial como o ar que a gente respira”. 

Há, portanto, diferenças ideológicas bastante contundentes nos três programas, a despeito do já reiterado esforço de deixar o texto dos planos palatável para as pessoas. E é muito simbólico que essas diferenças se apresentem na questão cultural exatamente quando percebemos o país tão dividido. Dar importância à cultura é o mínimo democrático. Entender a cultura é patamar civilizatório. O discurso da identidade nacional já buscado em políticas culturais anteriores à ditadura militar sempre deixou de lado valores e funções essenciais da cultura em especial da população preta e indígena brasileira. Já houve o momento em que saberes e conhecimentos ancestrais milenares foram tratados como “folclore”. Foi assim que difamaram Exu a tal ponto de tratarem um orixá fundamental às culturas de matriz africana como o diabo. Foi assim que apagaram centenas de idiomas e milhares de saberes dos povos indígenas. 

Afirmar a identidade nacional de um país colonizado e marcado historicamente por genocídios e conflitos de desigualdade é no mínimo um descuido imperdoável. A cultura deve ser reconhecida a tal ponto de sempre buscarmos a compreensão daquilo que não conhecemos. A cultura deve ser entendida como um elemento capaz de criar um jeito de não nos odiarmos, por mais que acreditemos em ideias completamente diferentes. A cultura deve ser um instrumento da reparação histórica que o Estado brasileiro e suas elites devem aos povos indígenas e ao povo preto. Está tudo aí, nas letras das músicas, nas telas, nos muros, nos livros, nos terreiros, nas ruas, na internet, na floresta. A diversidade cultural brasileira é algo ingovernável. A cultura nem cabe na política. 


 

Fonte: Antonio Carlos Souza de Carvalho*, Le Monde Diplomatique Brasil

*Antonio Carlos Souza de Carvalho, advogado e cientista político, especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo.

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