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Teremos democracia num mundo multipolar?

“ A globalização, tal qual a conhecíamos, chegou ao fim” (1). Agoniza pelas consequências deixadas pela pandemia e na esteira da guerra da Ucrânia e das sanções impostas à Rússia pelo ocidente. O mundo tem novos componentes e atores que fazem os Estados Unidos não terem mais a hegemonia que tinham.

O cenário futuro na economia global, indica que os Estados poderosos (G7) liderados pelos EUA, estruturada a partir das empresas transnacionais e do sistema financeiro rentista (grandes corporações industriais, bancárias, comerciais e big tech da comunicação) juntamente com a burocracia internacional (exercida pelos governos) deverá ceder lugar a um mundo multipolar e conviver com novos centros do poder econômico e político (2), como China e Rússia e demais países em desenvolvimento.

O economista francês Piketty, em seu novo livro A Brief History of quality observa: A questão é saber se o fim do neoliberalismo não é o começo do neonacionalismo ou neoconservadorismo, como queria Trump (EUA) e querem Boris Jonhson, com o Brexit (Reino Unido) ou os autocráticos Putin (Rússia), Narenda Modi (índia), Bolsonaro (Brasil), Viktor Orban (Hungria), Erdogan (Turquia) e demais adeptos da extrema-direita nacionalista. Apesar da preocupação com o avanço do neonacionalismo e/ou neoconservadorismo de direita e extrema-direita há sinais objetivos de que há um movimento em direção a mais igualdade política, igualdade social e igualdade econômica. Para Piketty, os três maiores problemas que a humanidade vive: a desigualdade econômica e social, o aquecimento global e migração (causada pela geopolítica da dominação) só se resolverão quando começarmos a caminhar em direção a igualdade (3).

Neste contexto, cabe perguntar: quais seriam os princípios ou os fundamentos necessários para que esse “novo mundo multipolar” se torne democrático, solidário e reduza a desigualdade? Um mundo a serviço da humanidade e não, apenas, de alguns poucos?
Existem ideias, propostas e experiências sendo discutidas e vivenciadas em academias, partidos políticos, governos, entidades não governamentais e de organizações populares, em diferentes ambientes, diversos regimes políticos e em várias regiões do mundo apontando para existência de novos parâmetros alimentando essa mudança, tais como:

  • Não existirá democracia política sem democracia econômica. Tomemos o exemplo do Brasil: os 10% mais ricos ganham 59% da renda nacional, isto é, 21 milhões de pessoas ganham 60% do que se produz, enquanto 192 milhões ficam com o restante. Mais, a população mais pobre do Brasil (que ganham até dois salários-mínimos – em torno de 80 milhões de pessoas) possuem apenas 0,4% da riqueza brasileira: ativos financeiros e não financeiros, como propriedades imobiliárias, terras, fábricas, bens de produção e outros. O primeiro desafio é, portanto, gerar equilíbrio entre o Estado, as corporações (financeiras, industriais, comerciais e de comunicação) e a população. Tornar a sociedade mais igual. Os chineses diriam: “A chave para a democracia em um país está em saber se seu povo é realmente dono de seu país e se os problemas que seu povo enfrenta são resolvidos” (4).
  •  Não existirá democracia sem respeito aos Direitos Humanos. Democracia e direitos humanos precisam andar juntos respeitando a diversidade, que é uma característica fundamental da sociedade humana. O mundo e a humanidade têm diferentes trajetórias históricas e culturais que precisam ser respeitadas. Além e existirem questões que são fundamentais e universais para existir vida com dignidade e igualdade: comida, saúde, educação, moradia, cultura, segurança, respeito as opções religiosas e de orientação sexual e outras. Sem isso, não existe democracia.
  • Não existirá democracia sem socialização do conhecimento. O conhecimento é um bem imaterial que deve estar disponível para todas as pessoas de todas as nações. Não pode estar preso a normas, leis e políticas como a das patentes, copyrights, royalties de diversos tipos que garantem lucros astronômicos para as empresas, entidades e governos e não permitem que a população tenha acesso aos avanços da ciência e aos seus produtos. O exemplo mais impactante, talvez, seja o das vacinas da pandemia que deixou, até agora, a maioria da população pobre do mundo sem possibilidade de se vacinar, enquanto, as empresas produtoras da vacina se enriqueceram brutalmente.
  • Não existirá democracia sem a democratização dos meios de comunicação. A sociedade sem acesso à informação terá dificuldade de fazer funcionar a economia, a produção, o estado, os serviços sociais fundamentais a serviço de toda a população. Os oligopólios dos meios de informação são hoje a fonte de desinformações e deformações, erosão dos processos democráticos, do avanço do populismo de direita e geradores de ódios e preconceitos. As redes sociais comandadas pelas big tech (sob controle dos homens mais ricos do mundo) junto com os meios de comunicação tradicionais de comunicação na mão de grupos privados servem para enriquecer os seus proprietários e dominar a população para seus interesses econômicos, políticos e culturais, além de exercer o controle absoluto das informações e dos dados da população.
  • Não haverá democracia sem participação da sociedade civil através de suas organizações e movimentos. Não basta fazer eleições regulares de tempo em tempo se não houver uma gestão descentralizada, transparente e com ampla participação da sociedade civil na organização econômica e social do país. Para isso, o estado deve fornecer um sistema adequado de informações à população e mecanismos de consultas, discussões e decisões sobre suas políticas públicas e a condução da política econômica.
  • Não haverá democracia sem a promoção da eco civilização. Enquanto não houver respeito e preservação da natureza e aos seus bens: ar, terra, água, mata, animais, minérios, enfim, tudo o que envolve o meio ambiente não haverá democracia. Estes bens são finitos e não podem servir para a exploração destruidora da natureza e ganhos econômicos para poucos (5).

O cientista Luís Felipe Miguel em seu livro, recém-lançado: Democracia na periferia capitalista: impasses no Brasil, nos ajuda a entender melhor como deve ser vista a democracia. Diz ele: “Uma democracia que está condenada a não desafiar a reprodução das desigualdades é, quanto muito, uma democracia pela metade” (6). Conforme ele, existem quatro interseções entre democracia e desigualdade:

  • A democracia pressupõe a igualdade de valor entre as pessoas: todos devem contar igualmente, a vontade de um pesa tanto quanto a vontade de outro, assim como o bem-estar de uma pessoa vale tanto quanto a de outra. Isto resulta em que todos devem participar de forma igualitária no processo de tomada de decisões.
  • A democracia produz igualdade política ao transformar todos os cidadãos dotados de direitos idênticos. Acontece que a igualdade convencional, que as democracias praticam hoje, oculta as desigualdades econômicas e sociais e as naturaliza ou as trata ocasionalmente para propósitos específicos.
  • Ocultar as desigualdades sociais torna a democracia vulnerável fazendo que as vantagens materiais e simbólicas dos grupos privilegiados se materializem no campo político, onde predominam e determinam seu funcionamento e seus objetivos. Com isso, se reproduz os padrões estruturais de dominação nas instituições democráticas.
  • A democracia é instrumento e ferramenta na luta contra a desigualdade. Os grupos que sofrem as consequências da desigualdade de renda, escolaridade, classe, gênero, raça e/ou outras podem e devem se valer da democracia formal para buscar incentivos, políticas e medidas que se contrapõem a reprodução das desigualdades e das dominações em outras esferas da vida social (7).

Estes são alguns princípios e fundamentos que o mundo multipolar precisa adotar se quiser ser democrático e produzir a igualdade de oportunidades e de vida econômica e social da humanidade. Desafio colocado para todos nós. Ao eleger um novo presidente deveríamos estar optando, como critério de escolha, entre continuar a defender e manter as estruturas de dominação que reproduz a desigualdade e as injustiças de toda a ordem ou um mundo solidário e que contemple e acolha as necessidades de todos. Não será Lula, sozinho, que mudará o mundo, mas ele será um grande incentivador e promotor deste novo mundo e, consequentemente, fará mudanças para um Brasil melhor e com mais igualdade para seu povo. Será um agente da construção de um mundo multipolar solidário.

Florianópolis, 11 de maio 2022


 

Fonte: Derci Pasqualotto, filósofo, sociólogo e educador popular.

(1) https://www.brasil247.com/entrevistas/a-globalizacao-tal-qual-a-conheciamos-chegou-ao-fim-diz-marcio-pochmann
(2) https://diplomatique.org.br/a-teoria-do-mundo-multipolar/
(3) https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/piketty-preciso-lutar-mais-pela-igualdade/
(4) https://www.brasil247.com/mundo/china-diz-que-a-chave-para-a-democracia-esta-em-saber-se-as-pessoas-sao-realmente-donas-do-pais
(5) Ler: https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2020-11/economia-francisco-proposta-jovens-assis.html e https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia-Politica/A-economia- de-Francisco-II/7/46161
(6) Ver Livro: Democracia na periferia capitalista: impasses no Brasil – Luiz Felipe Miguel.
(7) Ver Luís Felipe Miguel. Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil. Belo Horizonte, Autêntica, 2022, 366 págs. – no link https://www.youtube.com/watch?v=6qct5fIpuHc

 

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